domingo, 9 de junho de 2013

Fantasma

O homem entrou no café discretamente. Ninguém deu por ele, todo de preto, na sua marcha até ao balcão. Encostou-se todo e esperou que alguém lhe perguntasse o que queria. Ficou ali um bocado, invisível. Debaixo do zelo com que se vestida sobressaia uma decadência de doente, esfarrapada. Tinha a barba aparada e, por cima do casaco de polar de desporto, fechado até à gola, uma pequena mala a tiracolo, com ar de loja do chinês. Ainda lá estava, igual, quando o funcionário disparou na sua direcção. Queria raspadinhas. 5 das mais baratas. Ficou a raspar, a raspar. Fez dois montes diferentes, e levou um deles ao balde do lixo. Esperou outra vez, encolhido no mesmo sítio, que alguém o visse. Virou-se para a sala, que estava cheia, e um senhor de boina e suspensórios sorriu-lhe de uma mesa perto da televisão. Acenou com a cabeça um não muito pouco expressivo. Virou-se e já estava o miúdo do balcão a trocar as raspadinhas com prémio por outras. Eram duas. O homem, depois, encolheu-se novamente naquilo de raspar, com uma moeda minúscula e preta. Não tinha prémios, endireitou os papéis um no outro e passou no balde do lixo antes de sair, com o mesmo passo miúdo com que tinha entrado. Já não se viu mais, discreto como tinha vindo. O fantasma das raspadinhas. E o velho da televisão comentava com o empregado da sala, a meio do futebol: ele morreu quando lhe morreu a velha.

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