O homem entrou no café discretamente. Ninguém deu por ele, todo de preto, na sua marcha até ao balcão. Encostou-se todo e esperou que alguém lhe perguntasse o que queria. Ficou ali um bocado, invisível. Debaixo do zelo com que se vestida sobressaia uma decadência de doente, esfarrapada. Tinha a barba aparada e, por cima do casaco de polar de desporto, fechado até à gola, uma pequena mala a tiracolo, com ar de loja do chinês. Ainda lá estava, igual, quando o funcionário disparou na sua direcção. Queria raspadinhas. 5 das mais baratas. Ficou a raspar, a raspar. Fez dois montes diferentes, e levou um deles ao balde do lixo. Esperou outra vez, encolhido no mesmo sítio, que alguém o visse. Virou-se para a sala, que estava cheia, e um senhor de boina e suspensórios sorriu-lhe de uma mesa perto da televisão. Acenou com a cabeça um não muito pouco expressivo. Virou-se e já estava o miúdo do balcão a trocar as raspadinhas com prémio por outras. Eram duas. O homem, depois, encolheu-se novamente naquilo de raspar, com uma moeda minúscula e preta. Não tinha prémios, endireitou os papéis um no outro e passou no balde do lixo antes de sair, com o mesmo passo miúdo com que tinha entrado. Já não se viu mais, discreto como tinha vindo. O fantasma das raspadinhas. E o velho da televisão comentava com o empregado da sala, a meio do futebol: ele morreu quando lhe morreu a velha.
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domingo, 9 de junho de 2013
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
a miúda das botas
Estava um vento gelado, de arrepiar. Ninguém queria estar na sombra da paragem do autocarro, mas o sol estava escondido. Do fundo da rua, em passos minúsculos que pareciam levitar sobre o passeio, apareceu uma miúda anafada, puxada pela mão por uma senhora com as costas meio curvadas. Pararam junto à tabuleta amarela e confirmaram os horários sem falar. A miúda só trazia um botão do sobretudo mel apertado. Os outros dois não fechavam, deixavam ver o casaquinho de malha roxa, com ar artesanal, que combinava com uma camisola de gola alta castanha, daquela lycra horrível que aperta. A miúda tinha uma pancinha empinada a condizer a com as bochechas. Na mão que a senhora lhe deixava livre, ia abanando uma lancheira com padrão igual à mochila. Grande, enorme, um rectângulo de tralha a pesar nas costas. Género para-quedas ou saco de campismo, azul e cor-de-rosa, com um grande dizer estampado e com brilhantes: "cutie". Era amorosa, todo o conjunto. A senhora trazia três ou quatro sacos de compras semi-vazios. Tentava, a custo, tapar a garganta com o casaco vermelho de malha, com dois buracos bem à vista. Apertava a mão da miúda, esfregava-a como se fosse um termoventilador. O vento cortava a roupa, chegava à pele e aos ossos. Conversaram entretanto, mas não se ouviu uma palavra. A miúda soltou-se daquela mão engelhada e vasculhou os bolsos do casaco e das calças, depois virou-se de costas e abanou a mochila. A senhora abriu o bolso pequeno e encontrou-o vazio. Suspirou, suspiraram as duas. Voltaram a agarrar-se pela mão e retomaram a marcha. Afastaram-se da paragem, pouco tempo antes de chegarem uns quantos autocarros. Foram embora. A miúda tinha um andar esquisito. A sua bota castanha, de cano alto, do pé direito, estava quase toda descolada da sola e, a cada passo, dançava instável entre o sítio certo e as laterais do calcanhar. As antigas "botas com fome", como a minha avó costumava chamar, que andavam sempre de boca aberta, a rir. Nunca as tinhas visto assim: a chorar.
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