sábado, 6 de outubro de 2012

Senhor Mário

Ontem foi o aniversário do avô Mário. Nasceu com a República no dia, mas 25 anos depois dela. É uma figura curiosa, o meu avô.. 
Quando era novo escapou à tropa por excesso de peso, abriu uma mercearia e hoje ainda sabe trautear a lengalenga de produtos que vendia. Às vezes engana-se, mas ainda sabe. O meu avô, quando me vê, cumprimenta-me sempre com um "oooh flooor" que lhe vem do fundo da garganta, assim sentido e a passar pelo coração+pacemaker. Não tem preferências pelo Benfica nem pelo Sporting, até adormece a ver os jogos, e diz sempre o resultado errado quando a minha avó pergunta. Tem uma caneca de adereço de onde copiou o ditado, escrito à mão, para todos os copos por onde bebe: "Tinto ou Branco? Cheio!". O meu avô não se irrita com a política. Acha que são todos um "bando de cachopada" e que os telejornais são uma treta. Ainda assim, aproveita quando a minha avó se distrai comovida a ver as notícias de crimes para "roubar" pêssegos do cesto da fruta ou bocados de queijo, de uma das mil caixas herméticas para frigorífico que há por lá. Para o meu avô, crise foi quando passou a "Terra Nostra": a minha avó foi tomada pelo acesso das massas, reduzindo drasticamente nas batatas e no arroz. Era sempre macarrão - e ele não gosta porque isso não é português. Chegou-se a temer a depressão, eu e o meu primo demos-lhe a alcunha de "Macarrone" para o ver barafustar ainda mais. Era engraçado, um ralhar misturado com lamento, uma coisa pachorrenta de quem perdeu autoridade na cozinha. Mas também é forte. Fazia-me sempre rir quando alinhava nozes numa fila indiana e as partia à mão, com um murro seco ou uma palmada bem aplicada contra a mesa. Quando está calor veste aquelas coisas brancas de manga cava, enfiadas por dentro das calças. Tem sempre uma boina e no Inverno umas pantufas novas que a minha avó compra. 
Quando foi operado (uma das vezes) fui visitá-lo ao hospital, numa tarde em que ainda não tinha aparecido ninguém. Chamou-me flor e fez inveja aos colegas de quarto: é a minha neta que me veio ver. Levei-lhe um jornal, ele agradeceu e fingiu que leu um bocado. Perguntei-lhe se estava melhor, sem dores pelo menos, e  respondeu-me que estava sim, só que muito aborrecido. E que não se dorme bem naquelas camas altas. Quis logo saber da Clara (a minha avó), se tinha passado bem e a que horas vinha. Fez contas pelo relógio e pediu-me que à saída chamasse as meninas enfermeiras para o ajudarem a compor o "balseiro" onde o enfiaram. E que lhe dessem o robe, senão ela ralhava por ele andar desagasalhado. Recuperou em casa, muito mais animado com as sopas caseiras e o controlo fechado da Clarita. Desde há uns tempos,  desconfio que virou budista. Enfia-se numa meditação para dentro, como se estivesse a fazer contas de cabeça. Deixa a minha avó dominar as conversas todas e nem a interrompe quando começa a divagar e a demorar toda a gente. Ontem, à mesa do aniversário, tios e tias e primas enrolavam-se nas conversas da crise e da sobretaxa do IMI. Ele ia comendo camarões e fanando profiteroles às escondidas. Só abriu a boca quando lhe pousaram o bolo à frente e, por cima do silêncio respeitoso que se faz sempre que ele vai falar, perguntou: "Quem é o responsável por este bolo?"


"Que é isto? Parabéns Mário?? Já não é SENHOR Mário porquê? Chegámos à Madeira?! Omessa!" Isto tudo enquanto piscava o olho e se preparava para ser um miúdo malandro outra vez - e a minha avó envergonhada com estes disparates, "És pior que as crianças!". Depois consentiu que se acendessem as velas e cantou à sua maneira, com um ralentando puxado no final, um ritmo lento e portentoso de um fado à moda antiga. Brindou (sempre a penaltie) e rematou dizendo que "está uma crise tão grande que só lhe dão água". O meu avô é assim, não quer saber das bandeiras do avesso nem das sobretaxas de tudo e mais alguma coisa. É um feliz e pacato Mário, se não lhe roubarem o título de Senhor; Senhor Mário.