quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

a miúda das botas

Estava um vento gelado, de arrepiar. Ninguém queria estar na sombra da paragem do autocarro, mas o sol estava escondido. Do fundo da rua, em passos minúsculos que pareciam levitar sobre o passeio, apareceu uma miúda anafada, puxada pela mão por uma senhora com as costas meio curvadas. Pararam junto à tabuleta amarela e confirmaram os horários sem falar. A miúda só trazia um botão do sobretudo mel apertado. Os outros dois não fechavam, deixavam ver o casaquinho de malha roxa, com ar artesanal, que combinava com uma camisola de gola alta castanha, daquela lycra horrível que aperta. A miúda tinha uma pancinha empinada a condizer a com as bochechas. Na mão que a senhora lhe deixava livre, ia abanando uma lancheira com padrão igual à mochila. Grande, enorme, um rectângulo de tralha a pesar nas costas. Género para-quedas ou saco de campismo, azul e cor-de-rosa, com um grande dizer estampado e com brilhantes: "cutie". Era amorosa, todo o conjunto. A senhora trazia três ou quatro sacos de compras semi-vazios. Tentava, a custo, tapar a garganta com o casaco vermelho de malha, com dois buracos bem à vista. Apertava a mão da miúda, esfregava-a como se fosse um termoventilador. O vento cortava a roupa, chegava à pele e aos ossos. Conversaram entretanto, mas não se ouviu uma palavra. A miúda soltou-se daquela mão engelhada e vasculhou os bolsos do casaco e das calças, depois virou-se de costas e abanou a mochila. A senhora abriu o bolso pequeno e encontrou-o vazio. Suspirou, suspiraram as duas. Voltaram a agarrar-se pela mão e retomaram a marcha. Afastaram-se da paragem, pouco tempo antes de chegarem uns quantos autocarros. Foram embora. A miúda tinha um andar esquisito. A sua bota castanha, de cano alto, do pé direito, estava quase toda descolada da sola e, a cada passo, dançava instável entre o sítio certo e as laterais do calcanhar. As antigas "botas com fome", como a minha avó costumava chamar, que andavam sempre de boca aberta, a rir. Nunca as tinhas visto assim: a chorar. 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Baixa e Baixinha #1

Desci pela rua da Ilha e quase torci um pé na calçada. Continuei, vi um carro a raspar o muro lateral da Sé e arrepiei-me como se fosse meu. Cheguei às escadas e parei para, a pedido, fotografar um casal (alemão?), que estava bastante perdido mas a adorar o passeio. Desci pelo quebra-costas sem mais interrupções, mas não sem deixar de apreciar as meninas da casa de fado à coca de turistas. Já na curva antes do Arco, desviei-me, no limite, de um cão pequeno e despenteado que vinha em sentido contrário, a toda a velocidade. Depois vejo Capas e Batinas e, embora sem conseguir ainda ouvir, percebo que é uma tuna feminina. Cantavam o "à meia-noite ao luar" com uma doçura exagerada. Muito mansas, pensei. Deixei-lhes 1€ por respeito às Capas - agradeceram com um piscar de olho. Segui até ao Nicola e entrei para um café rápido ao balcão, ouvindo ao longe as meninas a subirem o tom. Percebem-se, agora, claramente as pancadas no bombo. Dois velhos comentam que "parece que estão a rachar lenha". Riem, eu também. Volto à rua, está um homem, sentado num banco de plástico, a tocar o "quizás quizás quizás" num acordeão brilhante que larga demasiado ar. Abrando o passo, não é costume ouvir um músico de rua tão delicado nas notas. Aproximo-me com outro euro em punho e, antes de lho deixar na mala que tinha aos pés, já ele está a agradecer-me com um sorriso meio podre. Engasguei-me e atropelei um "bom dia" num "boa sorte". Ainda nem tinha andado 20 passos quando alguém me acena do meio da rua. Demorei até perceber quem era, detive-me à conversa por uns instantes. Recuperei o andamento e percebi que, ao chegar à descida para a Praça 8 de Maio, ainda consigo ouvir o acordeão velho, convicto no mesmo tema. Estão ciganas com olhar desinteressado a vender meias do topo do muro, a maioria dos que passam não vêem nada destes negócios. Meto pela Rua da Moeda, sempre com o seu ar meio imundo, apenas recortado, aqui e ali, pelo aroma das padarias, e mini-mercados que vendem "molhadas" de hortaliça. Quando se começa a ver a mini-feira de roupas e outras contrafações chegam os primeiros acordes da pianola do Cortês, que está sempre no mesmo sítio - agora com um teclado novo. O desfile de personagens não acaba sem entrarem os senhores e as senhoras que se acumulam nas filas da Loja do Cidadão ou que deambulam pelo largo, sem mais nenhuma ocupação. Eu sigo, já perdida no raciocínio que interrompi a meio da primeira rua. Vinha a organizar o dia, a transformar o cérebro em agenda. Quase torci um pé, depois distraí-me até cá abaixo.