sábado, 28 de dezembro de 2013

não há palavras.

Fico mais vezes muda do que gostaria. Eu, para minha vergonha, formada numa faculdade de Letras, acabo irremediavelmente a perdê-las (e o sentido da tese, o que me aumenta a desgraça) quando me distraio e me descontraio a ouvir um bom fado. Não um qualquer, nem um que não lhe seja digno de nome. Um em particular, o Fado na voz que prefiro entre todas. Este novo fado que já devorei mais que os doces de Natal, que sabe melhor que os Ferreros e os Rafaellos - juntos e multiplicados. Tão inexplicavelmente bom e igualmente impossível de apanhar. É para sentir com os olhos fechados, enquanto as palavras do Alegre regressam e se dobram em sentidos.


A origem do fado não importa
Ele é a própria origem ou talvez
D. Pedro coroando Inês já morta
Ou a história escondida atrás da porta
Onde se aninha o medo português

Não procures a origem: ele é a origem
Antes do antes e antes do começo
Como oiro no avesso da fuligem
Ou Lisboa e Pessoa e aquele verso
Onde os sentidos sentem o que fingem

Não procures na história: ele está fora
E estando fora ele é o próprio centro
A hora antes da hora e aquela hora
Onde o dentro está fora e o fora dentro
Do momento que passa e se demora

Não busques noutro lado: ele é aqui
E sendo aqui é sempre o outro lado
O presente e o passado e o nunca achado
País que é e não é dentro de ti
Onde tudo começa e tudo é fado

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Farewell.

Páscoa 2011-2013

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

gostar de ti é um poema que não digo.

Quando chega a noite e o frio dá vontade de fazer uma toca nas mantas polares, fingir que não há nada do outro lado e escolher meticulosamente a quem se autoriza companhia. Dá vontade de ir remexer nos livros que dormem no quarto ao lado, nas coletâneas vermelhas oferecidas - mas não vou, nem fui que o medo manda. Fico só encolhida o mais que posso, metida dentro de uma música a preto e branco, ou de um fadinho chorado da reação. Dá mesmo vontade de ficar assim, esquecer a crise e o bicho da troika, os ministros ausentes e as comemorações do Cunhal. Mas adiante que vai tudo chutado para canto, que à tarde "Somos Portugal". Ah miséria. Aborrecimento e tédio deste país... até que eles lá vêm, por surpresa e mistério da internet. Vêm sem nome, poema e tudo mais na dúvida. Pede-se ajuda, sem vergonha nem descaramento. E, ah, já se pode desfrutar deste país assim cantado. Com tudo o que não se sabe do amor, também. Com tudo o que não se sabe e com todo o fogo maldito das tranças em Coimbra, que não se sabe, também, como não ardeu.
 
Fica este, novidade, e duas idiotas (oh irmã) a ver a que é que soam as rimas.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

não vês?

A propósito de umas aventuras literárias foi-me pedida uma pequena apresentação, qualquer coisa como "eis a mariana em 5 linhas". Não podia, nunca, não te incluir. Antes disso, claro, tentei crescer uns palmos com referência a uma ou duas medalhas sem jeito. Mas tinha sempre de chegar a ti: "Desde junho de 2008 é orgulhosa autora do (muito modesto) blog Odeio Ervilhas". Sempre. És, meu querido, a casa na árvore que todos os putos querem - e que, como eu, nunca tiveram. Um cantinho só meu (só nosso), para sempre cúmplice e saudoso dos primeiros tempos. Também carregado de vergonha pelas baboseiras que eu mesma, menos isto e menos aquilo, fui escrevendo. Marca de evolução para coisa nenhuma, entre muitas palhaçadas e ocasionais momentos sérios, dramáticos. Um blog psicólogo e terapeuta, onde convido quem quero e qualquer um pode entrar. É o filho mais velho do capítulo de um livro. "O mais belo livro de contos publicado este ano em língua portuguesa." A responsabilidade cresce, traz com ela um ligeiro travo a champagne (era rosé). E eu só queria que soubesses, que visses. Que ainda cá estivesses, que existisses no espaço que me fizeste inventar. Só para eu te dizer "olha vê". Não vês?

Talvez não. Porque, afinal, é verdade o que dizia o poeta. Não se pode morar nos olhos de um gato.

A ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=PXu6M0jpa4c

domingo, 15 de setembro de 2013

Um bocadinho meu.















 
Rio "humanizado" em livro com "Estórias do Mondego"
Autores orgulhosos de obra, ontem apresentada, que mostra a influência do rio na vida de muita gente que com ele vai convivendo

 
Edição de: Sábado, Setembro 14, 2013
Foi sobre as suas águas, apreciando as suas margens e a bordo de um barco que, em sua homenagem, se chama Basófias, que foi lançado ontem o livro “Estórias do Mondego” com contos escritos por cinco jovens licenciadas em Jornalismo, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que, por serem reais, dão importância, vida e personalidade ao rio que nasce na Serra da Estrela, termina na Figueira da Foz e interfere, das mais diversas formas, com milhares de pessoas, que com ele se relacionam diariamente.
in. Diário de Coimbra

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Lisboa, Lisboa.

Perdi-me numa autoestrada. Quem é que se perde na autoestrada? Ninguém. Nem eu, normalmente. Mas também passei a primeira portagem com o carro na reserva, fui a rezar até à área de serviço de Monte-Redondo e depois a tentar fotografar as placas com as saídas para Peniche e outros sítios de férias. A porcaria da máquina só atinou já bem depois de Óbidos, onde parámos para comprar uns litros de água fresca. Cada vez mais perto da cidade, quando percebemos que devíamos estar na A1. As frequências do rádio iam enlouquecendo em grunhidos impercetíveis. O carro deslizava pelo alcatrão, todo pomposo com os seus pneus novos - e perdeu-se o tampão de uma roda, algures. Mas depois, mais perto, cada vez mais perto, aparece a sintonia daquela rádio maravilhosa. Já quase a chegar à saída para o aeroporto começa um fado. Uma onda brutal de saudade atravessou-me a tal ponto de abraçar o volante. Queria saltar para fora dos vidros. E o Bruno parvo a olhar para mim (esse filho da mãe que me acompanha sempre nestas aventuras, nunca tem bateria no telemóvel e raramente cumpre horários). Olhava e eu cantava, berrava aquele fado lindo. Maravilhada com tudo, perdi-me nos cortes e nos mil semáforos sempre vermelhos. Seguimos as indicações até Chelas, Olivais, Parque das Nações, FIL. Então sentiu-se um calor morto e abafado, o cansaço e as corridas entre cargas e descargas. Caixas, galinhas, inBags, marca ergue-te por todo o lado. Depois a decoração, e o amigo vitrinista que apareceu a dar dicas. Há também amigas e os seus namorados perfeitos, vizinhos dos stands ao lado e o senhor António que deita o olho às nossas malas, à troca de quando vai comprar uma cerveja nós olharmos pelas suas madeirinhas. Dentro da Feira parece sempre dia, tipo quatro da tarde com sol inclinado. Depois quando se volta a siar à rua já é outro dia, passa da meia-noite e eu à procura das chaves do carro, depois à procura da rotunda e do corte que não posso perder. E às vezes perco, e ando em voltas enormes e complicadas, cidade fora ao som da rádio Amália. E há poucas coisas melhores, por estes dias, que uma rádio que só dá Fado. As saudades (tuas) que eu tinha.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

na chama de uma casa em fogo.

Como é que querem que estude, que me concentre. Que seja toda investigação académica, em corpo de letra times new roman, tamanho 12. O corpo que me lembra não é o da letra, destas letras pelo menos. Enquanto isso, derreto especada no ecrã, no vazio de uma folha quase em branca que aguarda, teimosa, os conhecimentos inventados que irão surgir - que têm de surgir, porra. E há prazos a respeitar, há coisas para fazer. Não há tempo, hipótese nenhuma para este fogo maldito, que abrasa devagarinho. Que consome centímetros de coisas que não são suas. Como é que querem que me concentre debaixo desta chuva de meteoritos. Como é que hei-de pensar nas letras, nos seus malditos corpos e formatações - se é o teu que não me sai da cabeça. Que escorregua feito água fria, vapor na pele quente de inferno. Corpo fantasma que vem inquietar o sono e os sonhos. Corpo presente que transpira. Das festas de verão, de andar à toa sem destino. Sei lá o que fazia, sei lá onde eu ia. Sei lá o que fazia, amor. Sei lá se fazia amor. 

domingo, 9 de junho de 2013

Fantasma

O homem entrou no café discretamente. Ninguém deu por ele, todo de preto, na sua marcha até ao balcão. Encostou-se todo e esperou que alguém lhe perguntasse o que queria. Ficou ali um bocado, invisível. Debaixo do zelo com que se vestida sobressaia uma decadência de doente, esfarrapada. Tinha a barba aparada e, por cima do casaco de polar de desporto, fechado até à gola, uma pequena mala a tiracolo, com ar de loja do chinês. Ainda lá estava, igual, quando o funcionário disparou na sua direcção. Queria raspadinhas. 5 das mais baratas. Ficou a raspar, a raspar. Fez dois montes diferentes, e levou um deles ao balde do lixo. Esperou outra vez, encolhido no mesmo sítio, que alguém o visse. Virou-se para a sala, que estava cheia, e um senhor de boina e suspensórios sorriu-lhe de uma mesa perto da televisão. Acenou com a cabeça um não muito pouco expressivo. Virou-se e já estava o miúdo do balcão a trocar as raspadinhas com prémio por outras. Eram duas. O homem, depois, encolheu-se novamente naquilo de raspar, com uma moeda minúscula e preta. Não tinha prémios, endireitou os papéis um no outro e passou no balde do lixo antes de sair, com o mesmo passo miúdo com que tinha entrado. Já não se viu mais, discreto como tinha vindo. O fantasma das raspadinhas. E o velho da televisão comentava com o empregado da sala, a meio do futebol: ele morreu quando lhe morreu a velha.

terça-feira, 5 de março de 2013

um dia, princesa

Matas-me com meia dúzia de palavras e demasiados "a"s. Juro que vou, um dia vou ter contigo e vamos correr os fados todos - e as tuas eternas músicas brasileiras. Adoro-te.

sms recebida 3/03 19:13
"Tenho lido o odeioervilhas para matar saudades das nossas piadas :) anda pra lisboaaaaaa. Aqui há muito fado."


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

a miúda das botas

Estava um vento gelado, de arrepiar. Ninguém queria estar na sombra da paragem do autocarro, mas o sol estava escondido. Do fundo da rua, em passos minúsculos que pareciam levitar sobre o passeio, apareceu uma miúda anafada, puxada pela mão por uma senhora com as costas meio curvadas. Pararam junto à tabuleta amarela e confirmaram os horários sem falar. A miúda só trazia um botão do sobretudo mel apertado. Os outros dois não fechavam, deixavam ver o casaquinho de malha roxa, com ar artesanal, que combinava com uma camisola de gola alta castanha, daquela lycra horrível que aperta. A miúda tinha uma pancinha empinada a condizer a com as bochechas. Na mão que a senhora lhe deixava livre, ia abanando uma lancheira com padrão igual à mochila. Grande, enorme, um rectângulo de tralha a pesar nas costas. Género para-quedas ou saco de campismo, azul e cor-de-rosa, com um grande dizer estampado e com brilhantes: "cutie". Era amorosa, todo o conjunto. A senhora trazia três ou quatro sacos de compras semi-vazios. Tentava, a custo, tapar a garganta com o casaco vermelho de malha, com dois buracos bem à vista. Apertava a mão da miúda, esfregava-a como se fosse um termoventilador. O vento cortava a roupa, chegava à pele e aos ossos. Conversaram entretanto, mas não se ouviu uma palavra. A miúda soltou-se daquela mão engelhada e vasculhou os bolsos do casaco e das calças, depois virou-se de costas e abanou a mochila. A senhora abriu o bolso pequeno e encontrou-o vazio. Suspirou, suspiraram as duas. Voltaram a agarrar-se pela mão e retomaram a marcha. Afastaram-se da paragem, pouco tempo antes de chegarem uns quantos autocarros. Foram embora. A miúda tinha um andar esquisito. A sua bota castanha, de cano alto, do pé direito, estava quase toda descolada da sola e, a cada passo, dançava instável entre o sítio certo e as laterais do calcanhar. As antigas "botas com fome", como a minha avó costumava chamar, que andavam sempre de boca aberta, a rir. Nunca as tinhas visto assim: a chorar. 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Baixa e Baixinha #1

Desci pela rua da Ilha e quase torci um pé na calçada. Continuei, vi um carro a raspar o muro lateral da Sé e arrepiei-me como se fosse meu. Cheguei às escadas e parei para, a pedido, fotografar um casal (alemão?), que estava bastante perdido mas a adorar o passeio. Desci pelo quebra-costas sem mais interrupções, mas não sem deixar de apreciar as meninas da casa de fado à coca de turistas. Já na curva antes do Arco, desviei-me, no limite, de um cão pequeno e despenteado que vinha em sentido contrário, a toda a velocidade. Depois vejo Capas e Batinas e, embora sem conseguir ainda ouvir, percebo que é uma tuna feminina. Cantavam o "à meia-noite ao luar" com uma doçura exagerada. Muito mansas, pensei. Deixei-lhes 1€ por respeito às Capas - agradeceram com um piscar de olho. Segui até ao Nicola e entrei para um café rápido ao balcão, ouvindo ao longe as meninas a subirem o tom. Percebem-se, agora, claramente as pancadas no bombo. Dois velhos comentam que "parece que estão a rachar lenha". Riem, eu também. Volto à rua, está um homem, sentado num banco de plástico, a tocar o "quizás quizás quizás" num acordeão brilhante que larga demasiado ar. Abrando o passo, não é costume ouvir um músico de rua tão delicado nas notas. Aproximo-me com outro euro em punho e, antes de lho deixar na mala que tinha aos pés, já ele está a agradecer-me com um sorriso meio podre. Engasguei-me e atropelei um "bom dia" num "boa sorte". Ainda nem tinha andado 20 passos quando alguém me acena do meio da rua. Demorei até perceber quem era, detive-me à conversa por uns instantes. Recuperei o andamento e percebi que, ao chegar à descida para a Praça 8 de Maio, ainda consigo ouvir o acordeão velho, convicto no mesmo tema. Estão ciganas com olhar desinteressado a vender meias do topo do muro, a maioria dos que passam não vêem nada destes negócios. Meto pela Rua da Moeda, sempre com o seu ar meio imundo, apenas recortado, aqui e ali, pelo aroma das padarias, e mini-mercados que vendem "molhadas" de hortaliça. Quando se começa a ver a mini-feira de roupas e outras contrafações chegam os primeiros acordes da pianola do Cortês, que está sempre no mesmo sítio - agora com um teclado novo. O desfile de personagens não acaba sem entrarem os senhores e as senhoras que se acumulam nas filas da Loja do Cidadão ou que deambulam pelo largo, sem mais nenhuma ocupação. Eu sigo, já perdida no raciocínio que interrompi a meio da primeira rua. Vinha a organizar o dia, a transformar o cérebro em agenda. Quase torci um pé, depois distraí-me até cá abaixo.