quinta-feira, 27 de junho de 2013

na chama de uma casa em fogo.

Como é que querem que estude, que me concentre. Que seja toda investigação académica, em corpo de letra times new roman, tamanho 12. O corpo que me lembra não é o da letra, destas letras pelo menos. Enquanto isso, derreto especada no ecrã, no vazio de uma folha quase em branca que aguarda, teimosa, os conhecimentos inventados que irão surgir - que têm de surgir, porra. E há prazos a respeitar, há coisas para fazer. Não há tempo, hipótese nenhuma para este fogo maldito, que abrasa devagarinho. Que consome centímetros de coisas que não são suas. Como é que querem que me concentre debaixo desta chuva de meteoritos. Como é que hei-de pensar nas letras, nos seus malditos corpos e formatações - se é o teu que não me sai da cabeça. Que escorregua feito água fria, vapor na pele quente de inferno. Corpo fantasma que vem inquietar o sono e os sonhos. Corpo presente que transpira. Das festas de verão, de andar à toa sem destino. Sei lá o que fazia, sei lá onde eu ia. Sei lá o que fazia, amor. Sei lá se fazia amor. 

domingo, 9 de junho de 2013

Fantasma

O homem entrou no café discretamente. Ninguém deu por ele, todo de preto, na sua marcha até ao balcão. Encostou-se todo e esperou que alguém lhe perguntasse o que queria. Ficou ali um bocado, invisível. Debaixo do zelo com que se vestida sobressaia uma decadência de doente, esfarrapada. Tinha a barba aparada e, por cima do casaco de polar de desporto, fechado até à gola, uma pequena mala a tiracolo, com ar de loja do chinês. Ainda lá estava, igual, quando o funcionário disparou na sua direcção. Queria raspadinhas. 5 das mais baratas. Ficou a raspar, a raspar. Fez dois montes diferentes, e levou um deles ao balde do lixo. Esperou outra vez, encolhido no mesmo sítio, que alguém o visse. Virou-se para a sala, que estava cheia, e um senhor de boina e suspensórios sorriu-lhe de uma mesa perto da televisão. Acenou com a cabeça um não muito pouco expressivo. Virou-se e já estava o miúdo do balcão a trocar as raspadinhas com prémio por outras. Eram duas. O homem, depois, encolheu-se novamente naquilo de raspar, com uma moeda minúscula e preta. Não tinha prémios, endireitou os papéis um no outro e passou no balde do lixo antes de sair, com o mesmo passo miúdo com que tinha entrado. Já não se viu mais, discreto como tinha vindo. O fantasma das raspadinhas. E o velho da televisão comentava com o empregado da sala, a meio do futebol: ele morreu quando lhe morreu a velha.