quinta-feira, 14 de outubro de 2010

casa abandonada.

É um espaço abandonado, o que sobrou de um ginásio que faliu à pressa e levou os móveis que havia para levar. A entrada (que era a saída) já não tem porta e a parede está escavada. O Rocha e o Fernando apresentaram-me aquilo no ano passado, quando foram roubar um aspirador e posters de tipas semi-nuas a publicitar calçõezinhos e bebidas energéticas. Apanhei um cagaço na sala de espelhos - era de noite e a luz do telemóvel não deu para perceber que era só o meu reflexo. Ontem voltei lá com as duas novas inquilinas da casa.
Ainda me lembrava do sítio das escadas, do sítio onde mandei uns berros - e do sítio onde estava o aspirador. Era outra vez de noite e só tínhamos as lanternas do telemóvel. O que eu não esperava era encontrar a porta do segundo piso aberta, depois do hall da recepção. Aí, era tudo novo para mim - e desta vez não tinha nem Fernando nem Rocha, só a Daniela e a Ana. Agarrei num cabo de vassoura e fui explorando o terreno semi-iluminado. Já não estávamos no ginásio. Ali eram os gabinetes e salas de um consultório privado de fisioterapia e estomatologia. Havia placas nas portas e tábuas a trancar a entrada principal. Na casa-de-banho ainda estavam pendurados rolos de papel higiénico e havia quatro sabonetes líquidos, já com a cor alterada, em cima do lava-mãos. O chão era alcatifado e as salas bem espaçosas - pelo menos agora, sem móveis. Não havia mais nada para descobrir no rés-do-chão. As escadas que subiam tinham muito pó e as aranhas começavam a instalar-se. No primeiro andar nada mais que uma porta semi-arrombada que ainda tentei, sem sucesso, abrir. As escadas até ao segundo andar eram ainda mais velhas, de madeira e com buracos em alguns degraus. A porta estava aberta e a fechadura tinha sido forçada com um pé de cabra (digo eu). Entrámos, o cabo da vassoura outra vez a abrir o desfile. Um corredor central e várias portas. Logo à direita a casa-de-banho, ainda com uma boneco colado na porta, em folha branca, ao qual alguém acrescentou a legenda "aqui obra-se". Daí para a frente eram quartos, alguns ainda com pedaços de papel de parede alaranjado, com sapos, e um espelho meio sujo. A última porta era a cozinha e tinha afixado um papel que dizia "comida quente e boa". Tinha fogão, forno, um armário pendurado na parede, um tanque, dois lava-louça e uma mesa pequena. Depois de deixarmos tudo revirado em conjunto, cada uma foi rever o que mais lhe agradou, antes de descermos as escadas até ao ginásio. Espreitei pelos quartos um a um. Nada de característico, nenhuma marca deixada pelo anterior habitante. Mas no último quarto, o que estava sozinho na ponta do corredor, dei com isto atrás da porta.

"Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca
Palavras de amor, de esperança
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que tem beijam
Quando a noite perde o rosto
Palavras que se recusam
Os muros do teu desgosto

De repente coloridas
Entre palavras sem cor
Espetadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."

Alexandre O'Neill

Com a minha voz de ler poesia, corri o texto de alto a baixo. Li tudo sem parar, com a luz fraca da lanterna do telemóvel. Acabei e disse o nome do autor. Pensei que tivesse feito uma grande coisa, mas alguém do outro lado responde "achas que dá para levar o armário da cozinha?". E eu arranquei o papel da porta, meti no bolso e preparei-me para descer as escadas. Fica muito bem na minha parede, já não vou devolver.

4 comentários:

Inês disse...

já dava para um capítulo de um livro....

Rita disse...

Por onde andas tu, rapariga? E onde fica essa preciosidade? No meu tempo de estudante não havia nada disso... Também quero.

odeioervilhas disse...

é a magia das casas abandonadas junto ao meu Refustedo :)

Caramela disse...

De um berro para Alexandre O'Neill.. isto há com cada coisa senhores. :P